quarta-feira, 30 de março de 2011

O DIREITO NA OBRA "O MERCADOR DE VENEZA"

Terás mais justiça do que querias!

Rafael de Souza Martins[1]
Taciana Damo Cervi[2]

Diante da incessante busca de um notável saber jurídico, recorre-se à notória contribuição da literatura. O texto proposto tem o intuito de demonstrar como juridicamente pode ser analisada uma das mais importantes obras de William Shakespeare, O mercador de Veneza. A investigação pode ser feita sob diversas ópticas, contemplando diferentes searas do Direito, como, por exemplo, o direito de empresa, o direito civil, o direito processual e a hermenêutica jurídica. Entretanto, nesta oportunidade, o leitor é convidado a compreender o negócio jurídico realizado pelas personagens e sua análise sob o aspecto do direito civil.
Escrito ao final do séc. XVI, o livro rechaça o choque cultural entre judeus e cristãos e revela como aspecto principal o negócio jurídico realizado entre Antônio, o mercador e Shylock, um usurário judeu. Antônio é inimigo público de Shylock, mas com ele realiza contrato de mútuo a fim de ajudar seu amigo Bassânio chegar até a fictícia cidade de Belmonte, onde este deseja conquistar a princesa Pórcia. Esta apenas se casaria quando a condição imposta em testamento pelo pai fosse implementada: que o pretendente, em um ato de pura sorte, escolhesse o porta-joias correto dentre três porta-joias.
Por tal motivo, Antônio adquire dívida com Shylock, no valor de três mil ducados, pelo prazo de três meses e, tendo como garantia pelo inadimplemento do contrato, uma libra de carne tirada mais próxima possível do coração de Antônio, o devedor. Percebe-se nesse momento que na Antiguidade o devedor respondia pelas dívidas com o seu próprio corpo, podendo até mesmo ser tomado como escravo pelo credor. Isso, atualmente, é inimaginável, mas o Direito é construído com o tempo e as conquistas do homem e a evolução da ciência jurídica se revelam nesse aspecto. 
Diante disso, o negócio jurídico criado por Shakespeare pode ser considerado hoje levando em conta os planos do mundo jurídico propostos por Pontes de Miranda. Interroga-se: o negócio jurídico em tela teria existência? Poderia ser questionada a validade de tal negócio? E quanto sua eficácia?
Primeiramente, deve haver uma separação entre o contrato principal, que é o mútuo, o contrato de empréstimo e a cláusula acessória, a libra de carne, a garantia em hipótese de inadimplemento. Nesse sentido, dispõe o artigo 184 do Código Civil que a obrigação acessória não afeta a obrigação principal quando esta for válida e as intenções das partes forem respeitadas. Assim, percebe-se que o contrato de mútuo não pode ser atingido ou afetado por ilegalidade da cláusula acessória, de modo que permanece sendo exigível.
Resta, então, averiguar o que foi proposto nos estudos de Pontes de Miranda. Quanto à existência do negócio jurídico, tem-se como inquestionável, pois aperfeiçoa-se por meio de uma simples manifestação de vontade feita por qualquer agente, em relação a qualquer objeto e sob qualquer forma. No tocante à validade, o negócio procede, pois o contrato foi celebrado pela manifestação de vontade livre e de boa-fé, os agentes eram capazes e legitimados. O contrato de mútuo teve prestação lícita, possível e determinada e consolidou-se na forma adequada. Quanto à eficácia do negócio jurídico em análise, verifica-se que o empréstimo surtiu efeitos durante o período proposto.
Portanto, o empréstimo possui existência, validade e eficácia, porém há objeção em relação à cláusula acessória, a libra de carne estipulada em caso de inadimplemento, que é nula. A pena de multa estipulada no acordo é ilícita e não pode ser exigida. Entretanto, em razão de ser cláusula acessória, não tem o condão de afetar o contrato principal que, observada a intenção das partes, é plenamente exigível.
Com isso, tem-se que os objetivos propostos foram alcançados, demonstrando que a literatura auxilia as reflexões jurídicas, facilitando sua compreensão. Nesse diapasão, sob a égide do Estado Democrático de Direito que tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, Shyloc não poderia exigir o cumprimento da pena de multa com a extração da libra de carne de seu devedor, entretanto ainda poderia exigir o cumprimento do contrato de mútuo.


[1] Aluno do quarto semestre do curso de graduação em Direito da URI,  aluno voluntário no Projeto Crisálida: Direito Cineliterário. 
[2] Mestra em Direito,  docente nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da URI, orientadora do projeto Crisálida: Direito Cineliterário. 

3 comentários:

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  2. O projeto Crisálida reforça a importância de se abordar o conhecimento em suas mais diversas áreas, colocando o Direito não como uma ciência autônoma, mas como uma ciência que engloba uma vasta gama de conhecimentos, costumes, culturas, tradições. O projeto visa reforçar a importância das artes no mundo jurídico, suas polêmicas e implicações que auxiliam nós juristas a pensar em constantes soluções, levadas ao caso concreto, a luz do Direito em nosso país.

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